sexta-feira, 24 de julho de 2015

O Oitavo Selo - Heloisa Seixas (2014)

Eu queria ter lido esse livro em um dia. Não li. Não porque eu não conseguisse ler um livro de apenas 190 páginas em um dia, um livro qualquer eu conseguiria, mas esse era exaustivo. Li-o em um dia, e algumas horas do dia seguinte.

Heloisa Seixas conta a trajetória de um homem que encarou a morte sete vezes durante seu percurso. Este homem, no caso, é seu marido, Ruy Castro. Mas mesmo sabendo disso, mesmo sabendo que é um "quase romance", como está escrito na capa do livro, encarei-o como ficção. Da mesma forma que um documentário é um recorte retocado da realidade, este livro é para mim uma poesia tirada da vida, tirada da morte.

O título faz referência ao filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo (1957). No filme um homem se encontra com a Morte, e para driblar a morte, ou adiá-la, ele propõe que ambos joguem xadrez. Da mesma forma, o personagem de Heloisa Seixas se encontra com a morte, mas consegue adiá-la muito mais tempo do que o personagem de Bergman.
O livro também traz outras referências fílmicas, literárias e musicais que algumas vezes nos levam às épocas vividas pelos personagens, outras brincam fazendo analogias, trazendo reinterpretações.

Cada um dos encontros do homem com a morte é um selo. O primeiro, é o sangue. O homem era criança ainda quando sua irmã mais nova morreu. Ela tinha hemorragia. Ela estava brincando quando começou, de repente, a botar sangue para fora. O menino também começou, mas pelo nariz. Era como se a morte tivesse vindo buscar a menina e esbarrado no menino, dizendo que voltava logo.

Depois, foi a cocaína. O segundo selo era o nariz. Ele tinha trinta e poucos anos quando recebeu a notícia de uma vidente que ele morreria com trinta e seis anos, devido à droga. Na época ele nem cheirava, mas depois começou e, felizmente, antes de fazer trinta e seis, ele parou de usar.

Assim, os selos vão sendo narrados, as fugas da morte, que parece cada vez mais perto do homem. O terceiro selo é o fígado, a bebida. Neste capítulo eu pensei um pouco no meu tio, também chamado Rui, que morreu de um câncer que comeu todo o seu aparelho digestivo, que o comeu todo por dentro. Ele era um homem tão bom, mas às vezes bebia.

O quarto selo é a língua, o câncer. Este capítulo foi o que me exauriu. Este capítulo deveria ser exaustivo, assim como o câncer. Quando eu tinha quatorze ou quinze anos, meu avô foi diagnosticado com câncer. Lembro que chorei muito. Lembro que pensei que ele morreria, que ele, um avô tão orgulhoso de sua neta, não a veria virar escritora. Mas meu avô foi muito mais forte que a doença que o tentava devorar. Meu avô sobreviveu ao câncer. Lembro do sofrimento, lembro da exaustão da minha vó, que acompanhei à distância.
No começo do ano eu fui passar as férias na casa deles em São Paulo. Ajudei minha vó a arrumar umas coisas velhas, uns documentos. Havia muitos exames, algumas coisas da época em que meu avô teve câncer e percebi que esse pesadelo tinha passado.
Novamente lembrei do meu querido tio Rui. A sua doença eu pude acompanhar menos ainda. Poucas vezes o vi. Acho que a última vez foi em um Natal. Lembro que quando era criança ele alegrava o Natal. Ele se vestia de papai noel, ele contava piadas. Ele era alegre e tinha um coração proporcional à sua grande barriga. Ou maior. Porém, na última vez que o vi, ele estava mais magro. A doença já começava a tirar sua vitalidade, sua carne. Nas fotos de seus últimos dias, ele estava magro, parecia que só havia ossos. E mesmo assim ele sorria.

Agora vejo que todos os casos de câncer de meus entes queridos eu vivenciei de longe. Mais do que nunca vejo que Florianópolis é mesmo uma ilha. Há mais um caso, de meu namorado.
Nós começamos a namorar no dia 29 de outubro de 2012, na primavera. No verão seguinte ele descobriu que tinha câncer. Ele se mudou para a casa dos pais, em outra cidade, para se tratar. Lembro de nós torcermos para não ser câncer, mas era.
Depois lembro do dia da sua operação. Naquela semana eu estava pintando o meu quarto, passando massa corrida nos buracos das paredes. Lembro também que eu lia o manual de roteiro do Mckee, pois devia escrever um roteiro para uma disciplina. Não me esqueço que esse dia foi angustiante. Eu sabia o momento que ele estava operando, lá na outra cidade. Eu sabia a hora que a operação terminou. Eu liguei para ele, mandei mensagens. Liguei, mandei mensagens. Ele não respondia. Eu chorei, eu não parava de chorar. Não sei quantas horas demorou, se a resposta veio só no dia seguinte, não sei. Para mim foi uma eternidade. Ele estava sem crédito, pediu para que seu pai colocasse crédito para ele. Demorou. Eu fiquei brava, eu disse: nunca mais faça uma operação sem ter crédito no celular, entendeu? Ou melhor, eu nunca mais vou ficar longe de você enquanto estiver fazendo uma operação!
Ele morou com os pais por mais alguns meses, um semestre. Depois voltou para Florianópolis e agora moramos juntos. No momento ele está novamente na casa dos pais, levou um exame para a médica examinar. Está tudo normal, graças a Deus. Ele ainda tem que fazer exames regularmente, por mais alguns anos. O câncer pode voltar. O câncer é exaustivo.

"Escrever. Escrever para não perder a sanidade, para não morrer. Afinal, não fora assim que acontecera com ela própria, desde o princípio? A mulher sabia. Quantas vezes já não confessara - um pouco constrangida, é verdade - que tinha começado a escrever por um ato de covardia, não de coragem? Pelo medo puro e simples de morrer se não o fizesse? Aquele mundo de histórias, que eu me contava desde criança, tornava-se tão denso, tão compacto, que eu tinha certeza de que estava a ponto de se solidificar e me matar, como um câncer. Então, cortei a carne e deixei correr a estranha seiva.A mulher sabia."

Heloisa Seixas diz que Escrever foi o que manteve o marido vivo. Ruy não tinha medo de morrer, Ruy tinha medo de não terminar o seu livro sobre Carmen Miranda. Ela entendia, pois para ela mesma escrever era para fugir da morte.
Quando li esse trecho fiquei pensando no texto de Blanchot, A Solidão Essencial (do livro O Espaço Literário). Para Blanchot, escrever é morrer e não morrer, é se transpor do Eu ao Ele. Refleti se o que Heloisa Seixas falava era diferente do que Blanchot diz, mas percebi que é a mesma coisa. Escrever é para não perder a sanidade, para não morrer, mas ao mesmo tempo que se escreve, se morre.

Nos três primeiros selos (sangue, nariz, fígado) o foco narrativo era no homem. Nos próximos, se torna a mulher, sua esposa, Heloisa. Heloisa agora sente medo, sente horror. Como se ela sentisse que a Morte estivesse ali, jogando xadrez com o seu marido. Com apenas a repetição de duas palavras Heloisa faz referência ao livro O Coração das Trevas de Joseph Conrad, adaptado para o cinema por Coppola, o famoso filme Apocalypse Now.
O horror, o horror. Eu li o livro e assisti ao filme faz alguns anos, uns dois talvez, mas lembro do horror que ambos têm. Consegui sentir que era esse mesmo horror, esse medo que a mulher sentiu. Com essas palavras, Heloisa conseguiu trazer suas referências e expor seu medo.
Houve mais outros três selos, coração, sexo e cérebro, até que a esposa não visse mais a Morte, não sentisse mais medo.

Porém a obra é algo interminável, mesmo quando acabada. Carmen Miranda nunca vai abandonar o escritor Ruy, e a morte nunca vai abandonar a escritora Heloisa, mas que de agora em diante que esta fique só no escrever, só na ficção.

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